Laços de Família de Clarice Lispector
Laços de Família de Clarice Lispector – Introdução: Estreando em 1944, com Perto do coração selvagem, Clarice Lispector for recebida com entusiasmos pela crítica brasileira. Sérgio Miliet saudou o romance como “a mais séria tentativa de romance introspectivo entre nós”, enquanto Antônio Cândido antevia na jovem escritora (tinha, então, 19 anos), a afirmação de “um dos valores mais sóbrios e, sobretudo, mais originais de nossa literatura”, dada “a intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade de vida interior”.
Além do romance citado, sua obra romanesca compõe-se de O lustre (1946), A cidade sitiada (1949), A maça no escuro (1961), A paixão segundo G.H. (1964), Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) e A hora da estrela (1977). Na área do conto, destacam-se as coletâneas Laços de Família (1960), A legião estrangeira (1964), Felicidade clandestina (1971) e A imitação da rosa (1973). Além de romances e contos, Clarice Lispector é também autora de livros de crônicas (Visão de esplendor, de 1975) e obras infantis (O mistério do coelhinho pensante, de 1967, A mulher que matou os peixes, de 1969, e A vida íntima de Laura, de 1974).
De origem russa (nasceu numa cidadezinha da Ucrânia em 1925), Clarice Lispector, ainda criança, vem com a família para o Brasil, onde se fixa (Nordeste inicialmente, e depois Rio de Janeiro). Sua formação intelectual e literária dá-se, pois, totalmente no Brasil. Casada com um diplomata (Maury Gurgel Valente), acompanha-o pela Europa e Estados Unidos onde nascem os seus dois filhos: Pedro (Suíça) e Paulo (Estados Unidos). De volta ao Brasil, separa-se do marido e passa a levar uma vida bastante isolada em seu apartamento, no Rio de Janeiro, ao lado do cão Ulisses, seu companheiro inseparável. A solidão, bem como a presença de animais, é um dos aspectos frequentes em sua obra. Em 1977, morre de câncer, um dia antes de seu aniversário, 9 de dezembro.
“Questões filosóficas profundas, como a verdade e a condição humana, estão colocadas nos romances, contos e crônicas de Clarice. Essa reflexão é sempre despertada a partir de um fato aparentemente banal, e jorra como produto incontrolável de um fluxo de consciência. A tomada de consciência pelas personagens de Clarice obedece muitas vezes a um ritual reflexivo, tortuoso e, até mesmo, doloroso. E é precisamente nesse momento que a obra da autora se revela em toda a sua beleza e profundidade, embora isso incomode a visão estereotipada e pacata corrente na classe média urbana, onde ela preferia localizar suas personagens” (“Literatura Comentada”- Abril Educação).
Laços de Família de Clarice Lispector: Na ficção de Clarice Lispector, destaca-se a introspecção, que ao pé da letra, quer dizer visão para dentro, e é mais ou menos isso que vamos observar na autora: partindo da vida interior de suas personagens, preocupa-se a escritora “menos em desvendar-lhes o mecanismo psicológico dos atos que a própria razão metafísica do seu estar no mundo”. Partindo sempre de casos aparentemente banais (o leitor que lhe buscar apenas o enredo sairá certamente frustrado), a escritora se volta para o mundo interior das personagens, dissecando-as com a sua máquina de raios-X, fazendo-as divagar sobre o sentido de sua existência e sobre os eu estar no mundo. O resultado é extremamente doloroso e angustiante: a existência humana não tem sentido, se captada racionalmente. Só resta então uma solução: viver inconsciente e massificado, integrando-se nas estruturas e convenções que o mundo oferece, ou então marginalizar-se. É exatamente essa consciência do existir que “estabelece uma angustiosa dualidade na inteireza do ser” (José Paulo Paes).
“Assim, é de notar-se que essa “conscience malheuse”, essa problematicidade da existência em face do universo, aflora nas personagens de Clarice Lispector, por via de um momento de iluminação intuitiva, por vezes de um incidente aparentemente trivial”, como aquela brusca freada que aparece em “Amor” e “Os laços de família”, a qual desperta a personagem para ver as coisas além da casca da rotina em que vive atolada. De um modo geral, todos os meus contos apresentam essa visão introspectiva. Outro exemplo é “O crime do professor de Matemática”, em que, ao enterrar um cão morto, ” o protagonista da narrativa se dá conta do que em si havia de culpa metafisicamente irresponsável” (José Paulo Paes).
É a partir daí que o iluminado se desprende dos laços convencionais da vida comunitária para viver, na nudez da autoconsciência, o seu drama existencial. Esse é o momento de introspecção, em que a personagem se desliga do mundo para se interiorizar no seu mundo e nas suas indagações metafísicas.
Depois tudo volta à normalidade, e a vida continua corrida e besta como ela é, pautada pela rotina e pelo artificialismo das convenções sociais.
Com relação aos contos de Laços de família, pode-se dizer que Clarice Lispector inovou, não apresentando aquela estrutura rigorosa que o conto tradicional requer como espécie literária. É que, para o escritor pós-modernista, as regras têm função mais descritiva que normativa, embora os meus contos apresentem uma característica básica do conto como espécie literária: a concisão.
Como salienta o crítico Massaud Moisés, Clarice Lispector, com Laços de família, “deu ao conto sem ou quase sem enredo, uma dimensão nova graças à sua singular capacidade introspectiva”, e alguns deles, como “Os laços de família”, “O crime do professor de Matemática”, “Feliz aniversário”, “Uma galinha”, “O búfalo” e “A imitação da rosa”, consagram definitivamente a autora e acrescentam à literatura brasileira uma dimensão sobremaneira original e enriquecedora.
Laços de Família de Clarice Lispector – Síntese e problemática
1) Devaneio e embriaguez de uma rapariga. O conto enfoca uma situação de fastio e tédio que envolve as pessoas que se deixam enclausurar pela rotina da vida moderna, enjaulando-se no dia-a-dia de um apartamento.
Cenas vagas, aéreas, vão-se deslizando pela mente embriagada de uma rapariga – casada e mãe. Os devaneios são constantes. A realidade presente, concreta – rara – muito rara.
Densa angústia a deprime e comprime. Esmaga-a o dia-a-dia, sempre cercada das mesmas coisas e do mesmo afeto.
“— Ai que não me maces! Não me venhas a rondar como um galo velho!” (7). Enclausurada no seu mundo, esmagada pela rotina diária, nada lhe agrada: “Mas ela nem sequer a responder-lhe, a alçar os ombros com um muxoxo amuado, importunada, que não me venhas a maçar com carinhos; desiludida, resignada, empanturrada, casada, contente, a vaga náusea” (15).
O protetor do marido passa-lhe pela mente. Roça-lhe o pé “por baixo da mesa, e por cima da mesa a cara dele” (15). Tinha o direito e quebrar a rotina? “— Cadela, disse a rir” (16).
Tecnicamente, o conto é narrado sob a forma de um monólogo interiorizado – o que lhe confere em caráter nitidamente introspectivo.
Nem foi preciso dizer que a personagem é portuguesa: a própria linguagem se encarregou disso. É o que se pode depreender a partir do uso de certos vocábulos (“elétricos”, “miúdos”, “fato”, “peúgas”, “pasto” etc.); construções frásicas (“estava a se pentear”, “estivessem a casa”, “se mo permite”); uso do sufixo diminutivo — ito (“frecurazita”, “vestidito”, “dedito” etc); e uso da apóstrofe em muitas expressões (“d’impaciência”, “d’enfeites”, “d’arte” etc).
2) Amor. Esquematicamente, diríamos que o tema deste conto é o mundo de rotina x cego (libertação).
“Amor” é semelhante ao conto anterior: está também sob o signo da rotina, onde a personagem vive sem refletir que há todo um mundo à sua volta, diferente a cada minuto, novo a cada momento. Ana é uma bem comportada mãe de família com filhos, marido e apartamento a cuidar: “Assim, ela o quisera e o escolhera” (19).
O seu mundo, porém, está prestes a desmoronar: o sossego de sua vida-agradável-burguesa dilui-se com uma freada brusca do ônibus e com um cego que mascava chicles. A partir daqui a insegurança domina-a, dilacera-a, e Ana se desprende da pacatez do seu mundo de rotinas: Ana já não era a mesma. Tem medo de perder o seu refúgio, de desmoronar o seu lar em que “tudo foi feito de modo que um dia se seguisse ao outro” (22) e em que “se podia escolher pelo jornal o filme da noite” (30).
Então tenta desesperadamente se reencontrar. Densa angústia: “Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa!” (27). Tenta desesperadamente se fechar, se enclausurar no seu mundo interior — no mundo de sua rotina, “afastando-se do perigo de viver” (30).
Livre do cego que a faz enxergar o mundo que a rodeia e os anseios a que renunciara como esposa, Ana, nos braços seguros do marido, “sem nenhum mundo no coração”, deita tranquila e em paz: ”Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia” (30).
3) Uma galinha. “Uma galinha” é um conto que mais parece uma crônica. Trata-se de uma galinha que foge à morte e ao almoço dominical de uma família. Perseguida pelo chefe de família, o bichinho “tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça” (32).
“Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada” (32). E, cansada de fugir, acaba sendo presa pelo perseguidor.
Mas definitivamente, aquela família não teria carne de galinha naquele domingo: “de pura afobação a galinha pôs um ovo” (33). E o chefe de família então decidiu:
“— Se você mandar matar esta galinha, nunca mais comerei galinha na minha vida!” (33).
E assim a galinha passou a “morar com a família”, até que seu convívio virasse rotina.
“Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos” (34).
Ela era sempre uma galinha – desde “o começo dos séculos”, e seria capaz de atuar sobre seu próprio destino e a sua própria condição galinácea.
Tendo, mais uma vez, o mundo restrito da pequena burguesia tradicional como pano de fundo, o conto volta a insistir numa temática básica de Clarice: “a alteração do cotidiano atuando profundamente nos sentimentos das personagens. É interessante observar que o próprio fato voltará a ser rotina e as pessoas esquecerão suas emoções”.
4) A imitação da rosa. A realidade exterior, ou seja, o motivo de “A imitação da rosa” é aparentemente banal: Laura, a personagem central do conto, vê-se envolvida com relações rotineiras: jantar em casa de amigos, e, à espera do marido (Armando), hesita em enviar à anfitriã (Carlota) um buquê de rosas que comprara para si.
É nessa hesitação que o drama interior da personagem vai-se revelando: Laura revive um passado de angústias, imersas nas suas próprias reflexões, abandonada num mundo vazio, onde não há filhos em que a rotina e a normalidade eram um imperativo avassalador. Laura se angustia e se autoflagela com seus devaneios tortuosos de torturas.
A beleza das rosas revela a sua obsessão pela perfeição: “sinceramente, nunca vi na minha vida coisa mais perfeita” (50). E as rosas, que passam a representar uma presença no apartamento vazio, são suas: “eram lindas e eram suas” (49).
Tendo ainda como meta o perfeccionismo, outra obsessão sua é a ordem, o método, o detalhe: “seu velho gosto pelo detalhe” (40); “seu minucioso gosto pelo método” (36); enfim,” magoava-a que Carlota desprezasse seu gosto pela rotina”.
5) Feliz aniversário. “Trata-se do conto mais irônico do livro. Por isso o mais mordaz, o que enxerga a vida com mais negativismo. Há um a perversidade implícita na forma da velhice e da vida. A rotina deixa de ser habitual para ser constante, existencial. E a ruptura dela é anual, vem de fora do mundo cansado que nos envolve, porque ele é nossa própria obra”.
O entrecho do conto, o seu ponto de partida, é um aniversário – aniversário de uma velha de 89 anos, que mora com a filha Zilda, a única que tinha condições de hospedá-la.
À noitinha, os filhos vão chegando, cada um mais superficial que o outro, o que a velha vai percebendo através do seu monólogo interior e seu aparente mau humor.
A superficialidade do tratamento fraternal, as rixas entre noras, as diferenças econômicas entre os vários irmãos, a educação diferente dos netos e bisnetos, os presentes imbecis e sem utilidades, s conversas vazias e forçadas, as aparências para “manter os laços” vão surgindo no conto e evidenciando a degradação da instituição familiar. Tudo isso deprime e escangalha a aniversariante, que, rancorosa, desabafa o seu ódio e a sua angústia:
“— Que vovozinha que nada!” explodiu amarga a aniversariante. “Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundos!” (68).
Depois todos se vão, e a aniversariante, quase nonagenária, permanece “sentada à cabeceira da mesa, ereta, definitiva, maior do que ela mesma… Será que hoje não vai Ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério” (75).
6) A menor mulher do mundo. Um explorador francês (Marcel Prete) descobre na África Equatorial a menor tribo de pigmeus do mundo e, dentro dela, a menor mulher do mundo: um ser humano de apenas, 0,45cm de altura a quem batizou com o carinhoso apelido de Pequena Flor. E descobre o francês: Pequena Flor, bem como a sua tribo (likoulas) estavam na iminência de ser exterminados: os bântus vivam caçando-os com redes e devoravam-nos. Na longínqua África, um ser humano (embora de 0,45cm…) estava em perigo de morte.
O achado foi publicado em jornal “onde coube em tamanho natural” (79). Mas, em vez de provocar sentimentos de piedade nas pessoas grandes, “a menor mulher do mundo” “causa sensacionalismo e uma curiosidade mórbida motivando diferentes reações: “aflição”, “perversa ternura”, “tristeza de bicho”. Em apenas uma criança de cinco anos, a reação é espontânea e sincera.
“— Mamãe olhe o retratinho dela, coitadinha! Olhe só como ela é tristinha!” (80).
No conto, como é fácil perceber, a sociedade rejeita qualquer ser ou coisa que não se enquadra na sua estrutura convencional e preestabelecida: “Deus sabe o que faz” (86).
7) O jantar. É o primeiro conto em que a personagem principal é masculina.
Num restaurante, entra um velho esfomeado para jantar. Num outro canto, alguém lhe espreita e acompanha os mínimos movimentos, do início ao fim da refeição. Observa-lhe as indecisões, os gesto, as mãos peludas, e mesmo os dentes postiços. Procura captar-lhe “as profundezas”, “mas é inútil. A grande aparência que vejo é desconhecida, majestosa, cruel e cega” (91).
Aqui, mais uma vez, sobressai a temática frequente de Clarice: pessoas que fogem dos meus sentimentos, escondendo-se sob uma casca dura através de si mesma. Pessoas que, para fugirem da própria fraqueza, chegam à impessoalidade, à quase inumanidade. É o caso do velho, que, por trás da aparente tranquilidade, certamente traz no seu íntimo um vulcão de problemas.
É exatamente isso que motiva a explosão de raiva de que é portador o narrador e observador do velho: “Mas eu sou um homem ainda”.
Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, eu perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer — eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue” (92-93).
8) Preciosidade. Novamente uma figura feminina volta a ser a personagem central: uma estudante de 15 anos, que não era bonita, mas que trazia dentro de si uma preciosidade — algo “que era intenso como uma joia. Ela” (95).
Introspectiva, tímida, medrosa, excessivamente pudica, ela se esconde de tudo e de todos, procurando passar sempre despercebida, utilizando uma aparência sóbria e fria como seu único meio de defesa: “Estou sozinha no mundo” Nunca ninguém vai me achar, nunca ninguém vai me amar! Estou sozinha no mundo!”.
Este “estar sozinha no mundo” era a sua preciosidade. Até que um dia foi tocada e o mistério de sua preciosidade maculado por passos que a seguem na madrugada sombria e algodoada. Então passa a ser mulher e “ganhou os sapatos novos” (108): ela se enquadra na estrutura e convenções sociais.
9) Os laços de família. Aqui é mãe (Severina) e filha (Catarina) que não se entendem.
O genro (Antônio), casado com Catarina, completa o triângulo da rotina e do desamor, reaparecendo, plenamente, a temática fundamental de Clarice: “não esqueci de nada? Perguntava pela terceira vez a mãe” (109). Sim. Ela esquecera alguma coisa: o sentimento, o amor que não existe entre elas, “como se mãe e filha” fossem “vida e repugnância” (112). “Mas agora era tarde demais. Parecia-lhe (a Catarina) que deveriam um dia Ter dito assim: sou tua mãe, Catarina E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha” (113). Entre elas não havia mais sentimento. E, para perceberem isso, foi preciso, mais uma vez uma “freada brusca” que as despertasse. A rotina superficializada os sentimento; o enquadramento social exigira comportamentos pré-determinados, palavras necessárias e vazias de significado; entre elas só havia palavras carregadas de atrito, de desencontro, de monotonia e irritação.
No seu apartamento, onde “tudo corria bem”, trancado nas quatro paredes do seu “Sábado”, o genro lê indiferentemente:
“— Catarina, esta criança ainda é inocente!”
Por trás dessa situação está uma verdade terrível: ou viver dentro da rotina ou quebrá-la, provocando neste último caso, o caos, o colapso, o pânico: o desvendamento de uma verdade monstruosa; verdade esta tão gritante, tão caótica, que ameaça a ruína completa. A única solução, então, “o único refúgio é a remodelação paciente da rotina, para que a verdade novamente seja contida: a fuga eterna dos homens de si mesmos!”.
“— Depois do jantar iremos ao cinema”, resolveu o homem (120).
Com relação à técnica, é curioso observar como a autora realça os olhos de Catarina: analisa-a pela expressão dos seus olhos, porque os olhos, sem dúvida, são a janela da alma.
10) Começos de uma fortuna. Aqui são colocados dois problemas que aprecem ser responsáveis por grande parte das angústias, desequilíbrios mentais e crimes da atualidade: o dinheiro e a falta de comunicação dentro do próprio lar. Na sociedade moderna, dita “de consumo”, o homem tece um mundo de sonhos e aspirações “totalmente” impossíveis sem o dinheiro que ele, na maioria das vezes, não tem. Só se lhe apresentam duas saídas: ele toma emprestado e vai-se envolvendo em dívidas sempre maiores: “Mas depois eu tenho de devolvê-lo a você e já estou devendo ao irmão de Antonio” (126), ou perde-se em conjectura: “se eu tivesse dinheiro… pensava Artur” (121). Artur, menino ainda, dá os primeiros passos na construção do que será um dia a sua fortuna: talvez uma dezena de quimeras, talvez centenas de promissórias.
“Papai, chamou Artur docilmente, com as sobrancelhas franzidas; papai, como são promissórias?” (129).
Artur vai aprendendo as manhas da vida e das pessoas: “Pelo visto, disse desviando do amigo a raiva, pelo visto basta você Ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima” (126).
As circunstâncias vão crescendo em importância, a necessidade de ser aceito se impõe, e Artur, “… à porta do cinema não pode deixar de pedir emprestado a Carlinhos, porque lá estava Glorinha com uma amiga” (127).
Dentro do lar, sua mãe, entregue demais às obrigações, não entendia seu problema: “A mão olhou-o seca como a um estranho, No entanto ele era mais parente que seu pai, que, por assim dizer, entrara na família” (122).
Patenteia-se neste conto, como em outros, também a situação dramática da mulher dona de casa, esposa e mãe, associada ao fogão e a trabalhos domésticos, sem outra função que a de procriar e aprontar roupa e comida para os hóspedes: marido e filhos.
“Coma mais batatas, Artur, tentou a mãe inutilmente arrastar os dois homens para si” (129).
Mas eles estavam perdidos sem seu mundo, falando de promissórias.
“Promissórias, dizia o pai afastando o prato, é assim: digamos que você tenha uma dívida” (129).
11) Mistério em São Cristóvão. Neste conto, podemos observar tendências surrealistas. Clarice explora o subconsciente construindo uma simbologia complexa e difusa. A partir do próprio título, verificamos de certa forma, o caráter velado do acontecimento. O caso se dá numa noite de maio, em casa de uma família onde “as crianças têm ido diariamente à escola, o pai mantém os negócios, a mãe trabalhou durante anos nos partos e na casa, a mocinha está se equilibrando na delicadeza de sua idade (19 anos), e a avó atingiu um estado!” (132). Nessa noite, após cada um ir se deitar, seguindo os padrões de uma vida sem graça, sem novidades, tem lugar o episódio: três mascarados, um galo, um touro e um demônio, invadem o jardim da casa para colher jacintos. “Um jacinto para pregar na fantasia” (133). O intuito dos três não é consumado porque descobrem o rosto da jovem olhando-os justamente quando haviam quebrado a haste de uma das flores.
“Nenhum dos quatro saberia quem era o castigo do outro. Os jacintos cada vez mais brancos na escuridão. Paralisados eles se olhavam” (134).
“Um galo, um touro, um demônio e um rosto de moça haviam desatado a maravilha do jardim…” (135).
Algo aconteceu entre estas quatro criaturas, algo que as perturbou profundamente, algo que quebrou a rotina maçadora de suas vidas comuns. No jardim, por instantes, os quatro se fixaram, e algum mistério de não sei onde, se fez ou desfez. No entanto, “era um toque perigoso para as quatro imagens” (135).
Pressentindo o perigo, os três mascarados fogem, e a moça grita. A família volta sua atenção e cuidados para a mocinha cuja única expressão fora o grito, e, entre seus cabelos, apareceu um fio branco. Por instantes, a família, com exceção das crianças, se preocupa com o fato. De alguma forma o acontecimento os toca, e eles se tornam “atentos e inquietos? “A mocinha já não vivia a perscrutar” (136), e tudo aos poucos volta ao de sempre: “… a avó, de novo pronta a se ofender, o pai e a mãe fatigados, as crianças insuportáveis…” (137).
Laços de Família de Clarice Lispector: Tal como nos contos “Os laços de família” e “Amor’, onde a freada do táxi e a arrancada do bonde representam momentos de tomada de consciência, aqui, em “O mistério de São Cristóvão”, o momento crucial se dá quando há o grito da moça, sinal de uma dor e de um espanto que se sucedem à experiência mágica que interrompe o fluir monótono dos dias sem sentido.
12) O crime do professor de Matemática. Este é outro conto que apresenta uma personagem masculina no papel principal. Trata-se de um professor de Matemática que encontra um cachorro morto numa esquina e resolve enterrá-lo, buscando, com isso, punir-se pelo fato de ter abandonado seu próprio cão numa outra cidade. Após fazê-lo, o professor sente-se livre e começa a pensar no seu cão. Assim, através de um monólogo de grande beleza e profundidade, Clarice vai deixando suas pinceladas de filosofia de vida: o cão (José) pertencera desde filhotinho ao professor de Matemática e juntos haviam brincado e se entendido. No entanto, o que não permitiu a continuidade deste relacionamento foi uma exigência do cão: “De si mesmo, exigias que fosses um cão. De mim, exigias que eu fosse um homem” (144).
O professor, incapaz de cumprir tal requisito, escolheu abandonar o cão, e, com ele, a preocupação de procurar satisfazer a exigência. Abandona-o com alivio.
“Com alivio sim, pois exigias com a incompreensão serena e simples de quem é um cão heroico – que eu fosse um homem” (145).
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